“Livros lidos são muito menos valiosos que os não-lidos. A biblioteca deve conter tanto das coisas que você não sabe quanto seus recursos financeiros, taxas hipotecárias e o atualmente restrito mercado de imóveis lhe permitam colocar nela. Você acumulará mais conhecimento e mais livros à medida que for envelhecendo, e o número crescente de livros não-lidos nas prateleiras olhará para você ameaçadoramente. Na verdade, quanto mais você souber, maiores serão as pilhas de livros não-lidos. Vamos chamar essa coleção de livros não-lidos de antibiblioteca.”
Nassim Nicholas Taleb
Quase gosto mais de saber sobre livros do que ler os livros. É um vício em me dar conta de que uma vida não é suficiente para ler tudo o que gostaria de ler. E a cada ano que passa, aumenta a lista de livros lidos mas aumenta muito mais a lista de livros-que-é-possível-que-eu-nunca-leia-mas-adoraria-poder-ler.
É uma lista infinita, e eu particularmente me atraio por coisas que já tem muitos livros escritos sobre. Quando há algo em que “ainda não há muito publicado sobre isso”, a coisa tem para mim um nível de interesse limitado. Gosto mesmo quando sei que posso passar a vida me aprofundando naquilo e nunca vou ter lido 10% do que foi publicado a respeito.
Quando criança, carregava na mochila 3 livros. Um romance, um livro de poemas e outro de contos. A gente nunca sabe o que vai dar vontade de ler no meio do dia e eu nunca tive pressa alguma em saber o que acontece com um personagem. Aliás, eu gosto mesmo é de não saber. Quanto mais a história me instiga, mais eu adio saber o que vai acontecer. Gosto de ficar imaginando diversas possibilidades e conviver com o mundo de variáveis que se abre a partir da situação em que pausei a leitura, e ainda poder ser surpreendida pelo/a autor/a que por vezes me apresenta um caminho que não me passou pela cabeça.
A graduação em letras foi um prato cheio de listas de livros, pra tudo quanto é gosto, interesse, emoção, gênero literário… Li tudo o que era pedido nas disciplinas, lia sempre que possível a bibliografia complementar, mas a lista de indicações era sempre imensa.
Quando comecei a entrar no universo da pesquisa acadêmica, outro mundo de listas de livros se abriu: há muitos momentos em que precisamos ler um único capítulo de um livro para uma determinada discussão, mas você se interessa tanto por aquele capítulo que você quer ler o livro todo; mas nem sempre é possível, porque na semana seguinte você terá outros livros e capítulos para serem lidos. Então a lista é inevitavelmente expandida.
Lembro do primeiro dia de aula na graduação, que um professor foi nos dar as boas-vindas e das coisas que ele disse, uma me marcou: ele falou para, já no início do curso, começarmos a construir a nossa própria biblioteca, que nos seria bastante útil quando fossemos professores. Segui aquilo à risca como se fizesse parte do currículo do curso. Precisava ler tais livros e, também, precisava comprar tantos livros. Meu pai, que nem chegou ao ensino médio e talvez nunca tenha lido um livro inteiro na vida, aceitou e assentiu, liberando para mim uma quantia mensal para que comprasse os livros “para a faculdade”.
Nunca atuei como professora de literatura, senão nos estágios durante a graduação. Mas aumento a minha própria biblioteca não como obrigação de futura professora, nem por impulso consumista e acumulador. Tenho com meus livros uma relação quase que de segundo cérebro. Seja pelas memórias que eles guardam e que nem sempre eu tenho a capacidade de recordar, então basta abri-los; ou porque às vezes preciso resolver alguma questão e portanto olho para as estantes e vou percorrendo os títulos que, por sua vez, me remetem ao tema do livro - cada um deles foi cuidadosamente escolhido e pesquisado antes de ser adquirido - e com isso vou construindo reflexões.
Eles também fazem parte do meu bunker imaginário. Durante a pandemia, muitas vezes era neles que me refugiava, e isso certamente teve uma importância na manutenção da minha saúde mental naquele período. Não só porque os lia, e tinha ali possibilidades diversas de viajar, me conectar, expandir a mente pra além das paredes do apartamento. Mas também porque a imagem de muitos livros reunidos me remete à ideia de um infinito de possibilidades. Se tudo isso já foi pensado, escrito, publicado, lido, quer dizer que temos um enorme potencial criativo para sair das mais diversas situações.
“O escritor Umberto Eco pertence àquela classe restrita de acadêmicos que são enciclopédicos, perceptivos e nada entediantes. Ele é dono de uma vasta biblioteca pessoal (que contém cerca de 30 mil livros) e divide os visitantes em duas categorias: os que reagem com: “Uau! Signore professore dottore Eco, que biblioteca o senhor tem! Quantos desses livros o senhor já leu?”, e os outros — uma minoria muito pequena — que entendem que uma biblioteca particular não é um apêndice para elevar o próprio ego, e sim uma ferramenta de pesquisa.”
Nassim Nicholas Taleb
A biblioteca de Umberto Eco é impressionante, e eu não entrarei aqui nas questões acerca de ter dinheiro para adquirir tantos livros e também espaço para guardá-los. Um dos meus sonhos de criança (construído depois de visitar a casa de uma amiga, filha de uma contadora de histórias) era ter livros espalhados por toda a casa. Até na cozinha tinha livros (de literatura mesmo, não de receitas) e a mensagem que aquilo me passou é que toda hora e todo lugar pode ser hora pra ler. (E não, o kindle e seus semelhantes não irão me convencer).
Nas minhas estantes, tenho livros que eu consulto de vez em quando, ou leio um pedacinho de tempos em tempos. São livros que posso levar mais de um ano para finalizar. Dá a impressão de que eles nunca irão acabar, e quando acabam, é aquela sensação de “ufa! Já estava na hora, né?”. É assim que tenho lido Do que eu falo quando falo de corrida do Haruki Murakami, Vazio Perfeito do Liezi, Ervas Daninhas do Lu Xun… E é assim que tenho lido muitos livros nos últimos anos.
Quanto às listas de desejos, tenho listas de interesses em livros com níveis diferenciados. Se estou envolvida em algum projeto de pesquisa específico, há os livros que eu quero ler com certa urgência e obrigação. Há os livros que quero ler para a vida. Outros, para os caminhos que escolhi na vida e que portanto são de leitura obrigatória - mas um dia, que não hoje. Há livros que quero ler porque alguém querido, ou uma referência para mim, indicou. E há livros que eu quero ler porque tenho a impressão de que algo bonito surgirá em mim depois deles. Tem livro que eu só quero ter e, eventualmente, ler trechos, folhear… Nem todos os livros são pra gente sentar longas horas e lê-los do início ao fim.
Livros de xadrez fazem parte desta última categoria. Há aqueles que estudamos do início ao fim, e isso certamente leva nossa compreensão do jogo a outro patamar. Mas há aqueles em que estudamos uma partida um dia, outra partida dali a três meses. Então eu tenho plena noção de que a resposta certa para a data em que vou ter lido todos os meus livros de xadrez é “nunca”.
As listas me dão pistas de por onde andavam meus interesses. Passo por elas e vou vendo que em determinado momento eu estava muito aficionada num tema específico, e às vezes ele não faz mais sentido, ou às vezes este tema se desdobrou em outras possibilidades e profundidades, sem que eu lesse toda aquela lista que selecionei sobre o tema.
Neste ano construí uma nova grande lista de desejos. Com alguns deles eu passei do flerte e passei a considerar realmente para a leitura em 2023. Mas não aconteceu. Limitei a lista que vou apresentar aqui àqueles que eu não li porque realmente a vida não deixou, e farei o possível para que no próximo ano eles mudem de lista (de preferência, para a lista dos “li e amei”).
Ficar com o problema: fazer parentes no chthluceno
Donna Haraway foi a queridinha da minha tese de doutorado, e um professor da banca contou quantas vezes eu mencionava direta ou indiretamente a frase dela “com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?”. Eu realmente gosto das reflexões que ela traz, ao ponto de ter uma tatuagem que remete à capa do livro Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. Este livro da lista aborda uma das contribuições dela que muito me atraem, dentro desse modo de fazer filosofia que não busca uma resposta, mas aponta para o poder de uma pergunta aberta (e a relação que eu fiz aqui com o livro do link foi totalmente superficial, mas quem sabe quando ler este da Haraway eu não traga um texto relacionando ambos com mais propriedade…).
As Políticas da Razão: Dimensão Social e Autonomia da Ciência
Isabelle Stengers apareceu em muitos encontros dos grupos de Epistemologia Feminista que participei durante o mestrado e o doutorado. Por outras vias, ela foi citada este ano em círculos que eu não esperava encontrá-la. Daí ressurgiu o interesse. Este, em especial, me chama a atenção pelo fato de que ela faz sua análise e crítica a partir de alguns casos científicos específicos.
Autobiografia do vermelho: Um romance em versos
Anne Carson foi a autora cujo nome mais ouvi este ano. O que pode dizer muito sobre o que andei ouvindo este ano. De todo modo, desde a defesa da minha tese que tenho pensado em estudar de fato a escrita ensaística, e então Carson tem sido indicação constante. Este livro é, na verdade, um “romance em versos” e é dos seus mais conhecidos.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
Pois eu passei por uma graduação em letras sem ler este da Clarice. Em algum momento deste ano eu decidi que eu leria e releria toda a obra de Clarice Lispector, seguindo seus livros, contos e outras publicações em ordem. É claro que não aconteceu, mas houveram bons reencontros (um destaque para o conto Mineirinho, que é, para mim, dos melhores da literatura brasileira). E Uma aprendizagem é um dos que ainda não li, por algum motivo do qual não me lembro quis muito ler este ano, mas me enrolei para adquirir. O ano acabou, e ele passou para a lista do próximo.
Ciência Contemplativa: Onde o Budismo e a Neurociência se Encontram
Nos últimos tempos tenho desejado estudar neurociência de verdade. Cheguei até a buscar uma pós-graduações, e agora meu Instagram vive me mostrando propagandas delas. E seria uma loucura, por ora, iniciar uma pós agora. De todo modo, há uma extensa lista de livros sobre o tema na minha lista maior de livros que quero ler. E é claro que este livro de Alan Wallace foi dos primeiros a entrar nela. Depois de ler, há anos, O cérebro de buda, um ótimo livro para iniciar no tema, meu interesse na conexão entre estes temas só aumentou.
O Mistério das Catedrais
Houve um momento durante a minha adolescência em que eu pensei em cursar arquitetura porque queria estudar catedrais góticas. Mas o interesse neste livro veio depois de algumas leituras neste ano sobre alquimia, porque há nas catedrais góticas uma estreita relação com símbolos herméticos, e que o autor, Fulcanelli, nos apresenta na obra. Pode ser que ele vá para uma lista mais distante, aquela dos livros obrigatórios para ler um dia na vida.
Lacan chinês: Para além das estruturas e dos nós
Passei alguns anos em busca deste livro, que une psicanálise e a escrita e a poética chinesa. Tudo começou quando era uma analisanda, de analista lacaniana que vivia a me indicar textos do Lacan e do Freud para ler. Lá pelas tantas, descobri um Lacan que visitou um mosteiro zen no Japão, e que teria se interessado pelo taoísmo. Daí soube deste livro, esgotado até este ano! Ah, este virá para a lista dos lidos em breve!
O Próximo Passo: Mulheres Ensinam Xadrez
Tive a oportunidade de me encontrar algumas vezes, online, com a Taís Julião, para organizarmos e gravarmos um curso sobre a Escola Chinesa de Xadrez. Taís é um poço de conhecimento sobre o xadrez feminino e eu aprendi demais nesse processo com ela! Este ano ela lançou este livro, resultado de uma extensa pesquisa de partidas disputadas por mulheres e que podem auxiliar didaticamente na compreensão do xadrez. Ainda não li, mas tenho certeza que estará sempre nas minhas listas de recomendação de livros de xadrez!
Cem anos de solidão
Este aqui é uma vergonha para mim. Não sei dizer quantos anos fazem que ele entra nas minhas leituras de um ano, eu pego emprestado, pego em bibliotecas, leio uma boa parte… E não finalizo. Este ano nem cheguei a emprestá-lo, seria uma vergonha. E coloquei ele na lista só pra passar vergonha mesmo, e ver se assim eu tomo alguma atitude a respeito no próximo ano.
Faz já alguns anos que não faço uma lista de leituras para o próximo ano. Eu sempre desrespeito a lista, ignoro quase que completamente. Todo ano também eu me absorvo obsessivamente em algum tema que acaba tomando a maior parte do meu tempo de leitura. No ano passado, eu lembro de ter feito uma única resolução: voltar a ler mais literatura, algo que a ressaca depois da graduação em letras, emendada com mestrado e doutorado, haviam me tirado, e acabo indo para outros gêneros. Li pouca literatura em 2023, mas mais do que nos últimos anos. Resolução cumprida, portanto.
Este foi um ano que a minha lista de “livros para ler” aumentou muito. Resolução para o próximo ano: modo anti-antibiblioteca - aumentar mais a lista de lidos do que a de “quero ler”.
Você também tem uma lista de não lidos? Me conta aí! Ah, e se quiser me ajudar a aumentar alguma das minhas listas, eu agradeço também. Aumentar lista de livros que quero ler é quase um hobby (olha eu querendo começar o ano não cumprindo minha resolução).
Tem um destaque no meu Instagram, de quase 2 anos atrás, em que eu faço um tour pelos livros que tenho aqui. De lá pra cá a biblioteca aumentou, e a bagunça dos livros também.
Sobre os livros de xadrez, meu trabalho no Instagram começou devido às minhas extensas pesquisas sobre livros e seus conteúdos, até o ponto em que as pessoas, nos grupos de xadrez no whatsapp, vinham me perguntar por referências diversas. Um amigo até disse: “você é uma grande mestre em livros de xadrez!”. Daí veio a ideia de fazer uma conta no Instagram para ser uma “biblioteca de xadrez”, e se descer o feed você encontra várias indicações de livros. Depois isso se desenrolou no projeto “Biblioteca de Xadrez” que é uma comunidade em que nos encontramos semanalmente em Clube do livro e discussões diversas sobre temas variados envolvendo o xadrez.
Sobre esta newsletter
Na newsletter Meandros eu divido com você as reflexões que os encontros, as relações e as vias percorridas (e a percorrer) nas artes marciais, no xadrez, na medicina e filosofia chinesa e no anarquismo me trouxeram.