Este texto foi elaborado durante o processo de construção do seminário sobre a concepção chinesa de corpo que eu ministrei na UTFPR, como parte do meu projeto de pós-doutorado. Ele será desdobrado em 3 (ou talvez 4) partes. Nesta primeira, traço as linhas que desenharam minha reflexão e o caminho que me conduziu até elas. Mais do que (re)pensar o corpo, minha proposta é questionar a tendência de reforçar hierarquias de poder e dualismos binários que criamos em algum momento da história. Espero que essas reflexões sirvam para que possam pensar, sentir e vivenciar formas alternativas de ser e estar no mundo.
Comecei a praticar Kung Fu em 2008, após avistar, em um ônibus, um cartaz anunciando um campeonato de Kung Fu que apresentava uma mulher em uma pose com um facão. Lembro claramente desse cartaz, porque, no fundo, sei que aquela imagem ressoou com algo dentro de mim.
Assisti ao campeonato, gostei do que vi, e comecei a praticar. É inevitável, ao iniciar um caminho nas práticas corporais orientais, que também nos conectemos com a cultura e a filosofia que as fundamentam. Nas imagens nas paredes, nos símbolos, estátuas presentes nas salas de treinamento, ou através das palavras dos professores e em como as práticas são organizados, a tradição ecoa em cada movimento.
Durante o mestrado, fiz uma pausa nas práticas e retornei no início do doutorado. Nesse período, meu interesse pelos estudos de gênero e pela epistemologia feminista fez com que a reflexão sobre o corpo se tornasse bastante presente. Ao começar a praticar Taekwondo e, em seguida, retornar ao Kung Fu e iniciar minhas práticas de Qi Gong1, comecei a perceber que essas práticas emanam de uma concepção diferente do que é o corpo. Uma concepção que, sobretudo, desafia a divisão entre corpo e mente.
Às vezes pergunto ao meu Sifu (professor de Kung Fu) por que certos movimentos são feitos de uma maneira específica, partindo de indagações filosóficas ou tentando compreendê-lo sob a perspectiva de elementos biomecânicos. Ele apenas responde: “só faz”. Como quem diz: “pare de pensar, experimente”.
Nessas práticas corporais orientais2 - artes marciais tradicionais como o Kung Fu, Tai Chi Chuan, Karatê, Judô, Aikido, Taekwondo, entre outras, ou o Qi Gong Terapêutico - aprendemos por meio do exemplo e da repetição. Ao início da aula, os praticantes organizam-se na sala de acordo com suas graduações, ou seja, o tempo de treino. Assim, aqueles que praticam há mais tempo ocupam a frente e servem de exemplo para os que vêm atrás. Durante as práticas, o que mais fazemos é repetir o que aprendemos, e não é à toa que podemos chamar os movimentos em sequência (taolus, katas, katis, poomsae, ou o nome que cada estilo ou arte marcial atribui a suas “coreografias”/formas/fórmulas) de rotinas. A ideia é que a cada vez que você repete um movimento, você busque executá-lo de maneira mais refinada, aprimorando sua execução.
E não se trata (apenas) de qual músculo estamos movimentando, mas da intenção por trás do movimento, do propósito que ele serve, ou da imagem que está por trás dele. (Guardem essa informação. A ideia de “imagem” será bastante importante na segunda parte deste texto!). Por exemplo, há um movimento de Qi Gong chamado “Separar Céu e Terra” que remete a Pangu, o mito chinês sobre a origem do mundo. Nesse movimento, estendemos um braço para o alto como se estivéssemos “empurrando o Céu”, enquanto o outro braço desce como se estivesse “empurrando a Terra”. O importante aqui não é a elevação do braço, junto a uma rotação, etc., mas o significado por trás, a imagem que dá vida ao gesto, e a intenção nesse “empurrar”, ao mesmo tempo em que alongamos certos “canais de energia” que percorrem as laterais do corpo e pelos braços.
Essas práticas nos ensinam a experenciar o corpo de forma plena. Embora nem sempre sejam poéticas e metafóricas (muitas vezes, são apenas um soco ou um chute mesmo), o que importa é que elas nunca se reduzem a um mero movimento que combina músculos, ossos, articulações, etc.
Nessas práticas, também nos deparamos com a possibilidade de nos construirmos, a partir do que podemos ser, e não do que fomos educados a acreditar que devemos ser, ou limitados pelo que pensamos que podemos ser.
Michel Foucault, um dos meus filósofos favoritos, propõe que podemos pensar a “tecnologia” de 4 maneiras:
1) Tecnologias de produção, aquelas que permitem produzir, transformar ou manipular as coisas (como as máquinas industriais);
2) Tecnologias dos sistemas de signos, que permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significação (como as linguagens de programação);
3) Tecnologias de poder, que determinam a conduta dos indivíduos e os submetem a certos fins ou dominação, objetivando o sujeito - um exemplo é o sistema prisional, que estabelece normas de conduta e regras de convivência, funcionando por meio da vigilância e conformação dos corpos;
4) Tecnologias de si, que permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, etc.; um exemplo aqui é a meditação, que proporciona aos praticantes habilidades de discernimento, tranquilidade, concentração entre outros benefícios.
Na minha tese de doutorado, em que abordei um periódico de divulgação científica organizado por cientistas e pensadores anarquistas, onde havia várias discussões sobre saúde, eu buscava possibilidades de refletir sobre como nossa subjetividade é formada, como nos entendemos como “nós mesmos”, qual a relação do corpo com isso e, inclusive, como moldamos nosso corpo. Em outras palavras, como nos fazemos “nós mesmos” e formamos nossa subjetividade, que reside em um corpo, passa pelo corpo.
No Kung Fu - e nas demais práticas citadas - o que fazemos, de forma explícita, é isso.
Teve um treino com a Profª Jamila, em que eu estava com muita dificuldade de realizar uns movimentos com o bastão. E a gente aprende no Kung Fu que as armas são extensões do nosso corpo, portanto, deve haver uma conexão com a arma. Quando pedi ajuda para realizar o movimento, Jamila apenas disse “não tenha medo de ser grande”, e aquilo bastou. Movimentar o bastão corretamente exige que você ocupe espaço na sala; caso contrário, o movimento não flui. Para alguém que sempre foi empurrada para os cantos em lugares lotados, aquela frase foi como um soco no estômago (ou um golpe de bastão na cabeça).
Eu adoro essa foto do Foucault, meditando em um mosteiro Zen. Sem nenhuma afirmação decorrente de longas pesquisas históricas, gosto de imaginar que Foucault propôs suas reflexões porque passou por essas práticas. E ele diz:
“Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo.” (Foucault, em O Corpo Utópico).
Eu me torno o que eu chamo de "eu"/me torno sujeito por meio do corpo. Sujeito é corpo. A subjetividade ela só pode acontecer em um corpo; não consegue se desvincular dele.
Aqui no Ocidente, frequentemente distinguimos corpo de mente, ou corpo de alma, entre tantos outros dualismos. Contudo, nossa subjetividade se move com nosso corpo e expressa a nossa relação com as coisas através da nossa vida que vivemos. À medida que vivemos, nossa subjetividade se forma em resposta a esse movimento, um movimento que se dá corporalmente, na vida prática e cotidiana. Não é possível dissociar corpo de mente.
E quando afirmei que neste texto iria “(re)pensar o corpo”, parece que estou reforçando esse dualismo. O ato de refletir sobre essas questões se repetiu em diversos momentos - nas minhas pesquisas, nas minhas práticas - mas, na realidade, através dessas práticas corporais orientais, não se trata simplesmente de PENSAR o corpo. A Paula Faro, em sua tese, refere-se a um “corpo-pensamento”, pois a experiência corporificada vem em primeiro lugar; a conceituação emerge a partir disso. Assim, é um corpo-pensamento, não um pensamento sobre o corpo.
Os primeiros dualismos que iremos questionar aqui são corpo e mente e, derivados destes, também teoria e prática.
O caractere 心 (xīn) em chinês significa coração, mas também mente. Geralmente, as traduções o apresentam como “coração-mente”, pois, ao mesmo tempo em que se refere ao órgão coração - seu aspecto físico e funcional - também diz respeito aos processos cognitivos e afetivos. O coração é concebido como o centro das emoções, da percepção, da intuição, da compreensão e do pensamento racional. Ou seja, citando Jana Rošker,
“Essa compreensão foi determinada pela ausência de contraste entre os estados cognitivos (ideias representativas, raciocínios, crenças) e afetivos (sensações, sentimentos, desejos, emoções)” (Epistemologia na Filosofia Chinesa).
Essa compreensão reforça o argumento de que conhecemos e teorizamos o mundo a partir de nossas experiências, que, por sua vez, são corpóreas. Em outras palavras, o corpo está presente na construção do conhecimento, da ciência.
Podemos afirmar, de maneira bem superficial, que para os chineses, a filosofia só é válida se tiver aplicação prática. Não é que eles não tenham teorizado abstratamente; certamente o fizeram. Mas os textos devem servir à prática, mais do que à leitura. Não devem ser objeto de reflexão, mas de prática; são para serem vividos. Não se destinam ao intelecto, mas à pessoa em sua integralidade.
A cultura, a história e o conhecimento científico são construídos por corpos. Diferentemente do que expressa a ciência moderna ocidental, que, ao afirmar a objetividade científica, parte de uma suposta “objetividade descorporificada” (terminologia proposta pela notável Donna Haraway3). Como se fosse possível explicar o mundo sem nele estar inscrito, sem trazer consigo lentes que moldam nossa percepção e compreensão do mundo baseadas em um repertório que resulta de nossas experiências.
Essa “objetividade científica descorporificada” não separa apenas corpo e mente, subjetividade e objetividade, mas também, junto a isso, sujeito e objeto, cultura e natureza, sexo e gênero, homens e mulheres. E não apenas separa, como também hierarquiza.
Em algum momento, a crítica feminista passou a considerar o sexo biológico como uma verdade, enquanto o gênero seria algo que modificamos, construímos, algo em que nos transformamos, reforçando a dicotomia natureza/cultura.
Finalmente, Judith Butler aponta que, nessa dicotomia, é como se concebêssemos a natureza como uma “figura da superfície passiva esperando aquele ato de penetração pelo qual o significado é atribuído”. Ou seja: “a natureza é apenas a matéria-prima da cultura, apropriada, conservada, escravizada, exaltada ou de outras maneiras tornada flexível para ser utilizada pela cultura na lógica do colonialismo capitalista” (Donna Haraway).
Olhamos para a natureza, e o “olhar” aqui é bem importante para a nossa discussão, como algo a ser lido por nós dentro de um discurso de verdade. Baseados em certos pressupostos científicos, fazemos análises sobre a natureza e afirmamos verdades a seu respeito.
A maneira como a ciência moderna ocidental olhou para os corpos e os categorizou, é considerada uma verdade - e uma verdade única - sobre os corpos. Desconsidera que a forma como olhamos para o mundo, o questionamos e o explicamos, tem como base o lugar de onde viemos, que lugar ocupamos, em nome de quem estamos falando, qual é a nossa visão de mundo… Ou, quais lentes estamos usando para observar o mundo, a natureza, os corpos. “Lutas a respeito do que terá vigência como explicações racionais do mundo são lutas a respeito de como ver”, já afirmou Haraway.
“Como o reconhecimento desse esquema corporal forma e muda nosso senso de mundo? O corpo trabalha para governar o movimento com base na integração de informações recebidas de várias fontes com o ambiente. É uma imersão holística. A consciência do próprio corpo constitui uma condição necessária para a ação intencional.
[...] Se considerarmos a ligação entre corpo e percepção, segue-se que cultivar o corpo pode modificar nossa percepção do mundo”.
(Robin Wang, em Yinyang - O caminho do céu e da terra no pensamento e na cultura chinesa)
As lentes que utilizamos para explicar o mundo também se relacionam com nossas trajetórias e as experiências pelas quais nossos corpos vivenciaram. Por isso, iniciei este texto compartilhando um pouco do processo de construção dessas reflexões.
Ao explorarmos a história da ciência e da tecnologia, deparamo-nos com narrativas de violência que fundamentaram explicações racionais do mundo. Um exemplo: no início do século XX, cientistas comprovavam cientificamente a inferioridade das mulheres e das pessoas negras. Existiam teorias científicas - como a eugenia - que sustentavam essas ideias. E sabemos bem quais são as implicações disso até hoje. Quando falamos de racismo estrutural e machismo estrutural, certamente as violências não surgiram dessas teorias científicas, mas nelas encontram justificativas. São lentes que usamos para explicar o mundo.
“Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?” (Donna Haraway)
Em Experimento com um Pássaro numa Bomba de Ar, Joseph Wright retrata os diversos sentimentos que os experimentos científicos provocavam - e ainda provocam: além da admiração e da curiosidade, as três figuras femininas na cena ou não olham para o que ocorre com o pássaro - que morre após a retirada do ar - ou, no caso da criança, até olha, mas expressando certa angústia.
As lentes com as quais olhamos e compreendemos o mundo carregam em si uma violência implícita.
E de onde vem isso tudo?
A emergência da modernidade filosófica é marcada pela transição do tato para a visão (encontramos elementos para essa discussão no Manifesto Contrassexual, do Paul B. Preciado; no em O Nascimento da Ciência Moderna na Europa do Paolo Rossi e também em O Renascimento do Nicolau Sevcenko).
Na pintura acima, conforme a descrição do Preciado, o olfato, o paladar e a audição são representados por homens jovens e saudáveis, absortos em suas experiências; o tato, por outro lado, é um velho cego que acaricia uma estátua de pedra; a visão, por sua vez, é um velho que segura um par de óculos, observando o tato à distância. Assim, ele vê tanto o tato quanto a estátua. Há, aqui, o pressuposto da visão como um modo superior de experiência, que não requer o corpo e observa sem ser contaminada ou observada.
O olhar é utilizado para distanciar o sujeito cognoscente de todos e de tudo, em nome do poder. E é considerado superior, pois pretende “estar em nenhum lugar ao mesmo tempo em que se alega ver tudo”, como Deus.
“Este é o olhar que inscreve miticamente todos os corpos marcados, que possibilita à categoria não marcada alegar ter o poder de ver sem ser vista, de representar, escapando à representação” (Donna Haraway).
E é aqui que entram os estudos anatômicos da Renascença, do médico belga que lecionava na Itália, Andreas Vesalius, o “pai da anatomia moderna”. Suas representações do corpo humano emergem durante o período de ascensão da modernidade filosófica e científica.
Por ora, vou parar por aqui, e seguimos essa conversa na próxima edição.
Sobre esta newsletter
Na newsletter Meandros eu divido com você as reflexões que os encontros, as relações e as vias percorridas (e a percorrer) nas artes marciais, no xadrez, na medicina e filosofia chinesa e no anarquismo me trouxeram.
Qi Gong: Prática corporal chinesa que é como uma meditação em movimento. Os exercícios combinam movimentos e atenção à respiração. Tem como base os princípios e teorias presentes na Medicina Chinesa.
Orientais: Estou assumindo aqui a divisão entre Ocidente x Oriente, apesar de compreender a discussão de Edward Said acerca do Orientalismo. Mas para fins de localização das práticas que estou abordando, optei por manter assim.
Todas as citações da Donna Haraway estão todas neste artigo aqui.